Embora seja uma matéria longa, ela é fruto da pesquisa do
professor Célio Bermann que a escreveu com muita propriedade para a edição da Revista SCIENTIFIC - nº44 - Especial Xingu. Esse rico material nos foi trazido ao conhecimento através da ativista gaúcha Sheila Camargo (@spascam) e Professora Sônia Mariza (@PersonalEscrito), que defendem com
todo o vigor as questões de comportamento e cultura das comunidades indígenas
do Brasil. E desta forma, dedicaram-se à causa mais polêmica da atualidade e
que cai como uma pedra sobre as comunidades ribeirinhas do Xingu, no leste da Amazônia,
o Complexo de Usinas de Belo Monte.
“O projeto de construção de Belo Monte, preparado pela Norte
Energia S.A., foi elaborado com o cuidado de não inundar nenhuma terra
indígena. Por esta razão, nenhuma comunidade indígena será realocada pelo
empreendimento.
Esta afirmação, no site da Empresa Norte Energia, construída para a construção
da Usina de Belo Monte no rio Xingu, tem sido utilizada como uma verdade para não
responsabilizar as empresas envolvidas na obra e o governo das inevitáveis
conseqüências que o projeto trará par as populações indígenas do rio Xingu.
Concebida como a principal obra do PAC do governo Lula, é mantida de forma
obsessiva pelo atual governo Dilma, a usina de Belo Monte é anunciada como a
terceira maior hidrelétrica em potência instalada no mundo.
As tentativas de reduzir as conseqüências socioambientais da obra, com a
operação a fio d’água, isto é, sem um grande reservatório capaz de regular a
vazão, apenas trouxeram mais problemas e proporcionaram uma sucessão de
equívocos, técnicos e econômicos. Belo Monte foi superdimensionada. A
capacidade de 11,2 mil MW só estará disponível durante três meses do ano. Nos
meses de setembro a outubro, quando o Rio Xingu fica naturalmente mais seco, a
capacidade instalada aproveitável da hidrelétrica não será maior do que 1.088
MW médios.
Por que, então, manter essa capacidade instalada total, que representará um
custo de investimento da ordem de R$ 30 bilhões, com o aporte financeiro do
BNDES, que se dispõe a financiar 80% do custo?
A resposta é que a usina de Belo Monte não virá sozinha. Para tornar viável sua
operação e assegurar o retorno do investimento, será necessária a construção
de, ao menos, outras três usinas à jusante, em Altamira, Pombal e São Félix.
E o conjunto de usinas projetadas naquele rio, considerado sagrado pelos povos
indígenas, pode significara impossibilidade da manutenção das condições de
existência e de reprodução das 19 etnias indígenas reconhecidamente existentes
na região.
Frente a esta evidência, o governo insiste em reafirmar que a Resolução nº 6 do
Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), de julho de 2008, reconhecendo
o interesse estratégico do rio Xingu para fins de geração de energia
hidrelétrica, “assegura” que o potencial a ser explorado seja somente o situado
entre a sede urbana do município de Altamira e a sua foz – ou seja, a usina de
Belo Monte.
É como se deliberações de governo em nosso país fossem pétreas, não passíveis
de uma reformulação, a gosto das circunstâncias. O resultado é que as
populações indígenas e as populações ribeirinhas tradicionais foram
deliberadamente colocadas á margem do processo de discussão da obra.
O processo de consulta nas audiências públicas para o licenciamento ambiental
da usina de Belo Monte foi obra de ficção. Os indígenas sofreram toda sorte de
constrangimentos para participar dos debates, as comunidades não foram
consultadas, e acabaram desconsideradas as críticas levantadas de forma
sistemática por um painel de especialistas constituído por cientistas de
importantes universidades brasileiras.
O projeto prevê a construção de cinco barragens, dois vertedouros e trinta
diques de contenção entre 40 e 1940 metros de extensão e altura entre 4 e 59 metros . Está prevista
a construção de 52 km
de canais com largura variando entre 160 e 400 metros . Seriam
realizadas escavações comuns da ordem de 150,7 milhões de m³ de concreto. O
projeto inclui a maior parte do desvio do fluxo de água do rio Xingu em uma
trecho de aproximadamente 100
km conhecido como Volta Grande do Xingu, para um trecho
que atualmente é ocupado por florestas e assentamentos de pequenos agricultores
entrecortados por diversos travessões da rodovia Transamazônica, por meio de
construção de dois canais de derivação ao norte da terra indígena de Juruna do
Paquiçamba.
O artifício utilizado na concepção do projeto de Belo Monte, ao reduzir a área
de inundação inicialmente prevista do reservatório dos 1.200km² para 516km²,
foi o de não inundar as duas áreas indígenas localizadas na região: a terra
indígena Juruna do Paquiçamba e a terra indígena Arara da Volta Grande. Ao não
inundar diretamente os dois territórios, o projeto se adapta à concepção dos
projetos hidrelétricos em voga de desconsiderar as conseqüências sociais e
ambientais das populações não inundadas ou “afogadas” pela formação dos
reservatórios.
Este artifício permitiu que o projeto não se sujeitasse ao disposto nos
parágrafo 3º e 5º do artigo 231 da Constituição Federal, que impede a remoção
das populações indígenas sem consulta prévia e exigindo a aprovação pelo
Congresso Nacional.
Como ficou evidenciado por Antônio Carlos Magalhães, antropólogo e indigenista
do Instituto Humanitas, em Aproveitamento hidrelétrico do rio Xingu “a região
da Volta Grande é considerada pelo empreendedor como área diretamente afetada
(ADA). No entanto, os povos indígenas Juruna do Paquiçamba, Arara da Volta
Grande e as famílias indígenas xipaya, kuruaya, juruna, arara, Kayapó, etc.,
como também a população ribeirinha, em geral, que habitam em localidades
diversas (Garimpo do Galo, Ilha da Fazenda, Ressaca, etc.,) não são
consideradas como diretamente afetadas, mas apenas localizadas na Área de
Influência Direta.
O projeto ainda vem sofrendo constantes modificações com a justificativa de
“otimização”. A mais recente indica apenas um canal de derivação em
substituição aos dois canais originalmente concebidos na revisão do projeto. O
fato é que a região da Volta Grande do Xingu sofrerá uma severa diminuição dos
níveis de água no trecho seccionado do rio. A “garantia” de uma vazão ecológica
de 700m³/s é uma ficção e não permite à população (incluindo as comunidades
indígenas Paquiçamba e Arara) que ficará na região água suficiente para suas
necessidades (transporte e alimentação à base de pesca). É possível acreditar
em uma fiscalização independente da Agência Nacional de Águas (ANA), a
monitorar as vazões de forma a impedir que não se turbinem as águas necessárias
para a geração nas épocas de hidrologia reduzida?
A insistência do governo em levar adiante o projeto de Belo Monte mostra que a
lógica técnica e econômica cedeu lugar à obsessão. Com graves conseqüências que
não se restringem às populações indígenas e comunidades ribeirinhas do rio Xingu.
Elas serão também sentidas nos bolsos de todos nós, consumidores de
eletricidade. O espectro do “apagão” parece ser a única justificativa para a
construção dessa usina.
Entretanto, ela aponta também o modelo de desenvolvimento que se quer dar á
região amazônica e ao país. A energia a ser produzida pela usina não será
utilizada para aliviar a pobreza e incorporar parcelas da população que sempre
estiveram excluídas das benesses do consumo. Ela será destinada a satisfazer a
necessidade de grandes grupos metalúrgicos na perpetuação do modelo que se
apropria dos recursos naturais das águas dos rios da região para produzir bens
de baixo valor agregado, mas de alto conteúdo energético para exportação. A
isso chamam de desenvolvimento.
É preciso reabrir o debate de modelo de desenvolvimento que queremos para o
Brasil. Está na hora de rever a concepção dos projetos hidrelétricos na
Amazônia.
Os rios amazônicos (Madeira, Tocantins, Araguaia, Xingu e Tapajós) detêm cerca
de 65% do assim chamado “potencial hidrelétrico” brasileiro. No debate está em
jogo o direcionamento da política energética do país, bem como o próprio futuro
da ocupação amazônica. É necessário diversificar a matriz de geração de energia
elétrica que atualmente prioriza a hidreletricidade, equivocadamente
considerada como “limpa” e “barata”. A utilização da energia dos ventos
(eólica) da biomassa (resíduos agrícolas), bem como outras fontes alternativas
devem ser ampliadas. E abandonar as que levam à destruição dos rios e culturas
de quem vive às suas margens”.
Depois de ler e fazer a devida análise pessoal, acredito não
haver mais dúvidas quanto à existência desse complexo tão agressivo e em
desacordo com a realidade dos tempos modernos e suas opções não descartáveis.