27 de novembro de 2011

BELO MONTE DESTRINCHADO POR UM ESPECIALISTA DE PESO



Embora seja uma matéria longa, ela é fruto da pesquisa do professor Célio Bermann que a escreveu com muita propriedade para  a edição da Revista SCIENTIFIC - nº44 - Especial Xingu. Esse rico material nos foi trazido ao conhecimento através da ativista gaúcha Sheila Camargo (@spascam) e Professora Sônia Mariza (@PersonalEscrito), que defendem com todo o vigor as questões de comportamento e cultura das comunidades indígenas do Brasil. E desta forma, dedicaram-se à causa mais polêmica da atualidade e que cai como uma pedra sobre as comunidades ribeirinhas do Xingu, no leste da Amazônia, o Complexo de Usinas de Belo Monte. 

O projeto de construção de Belo Monte, preparado pela Norte Energia S.A., foi elaborado com o cuidado de não inundar nenhuma terra indígena. Por esta razão, nenhuma comunidade indígena será realocada pelo empreendimento.


Esta afirmação, no site da Empresa Norte Energia, construída para a construção da Usina de Belo Monte no rio Xingu, tem sido utilizada como uma verdade para não responsabilizar as empresas envolvidas na obra e o governo das inevitáveis conseqüências que o projeto trará par as populações indígenas do rio Xingu.

Concebida como a principal obra do PAC do governo Lula, é mantida de forma obsessiva pelo atual governo Dilma, a usina de Belo Monte é anunciada como a terceira maior hidrelétrica em potência instalada no mundo.

As tentativas de reduzir as conseqüências socioambientais da obra, com a operação a fio d’água, isto é, sem um grande reservatório capaz de regular a vazão, apenas trouxeram mais problemas e proporcionaram uma sucessão de equívocos, técnicos e econômicos. Belo Monte foi superdimensionada. A capacidade de 11,2 mil MW só estará disponível durante três meses do ano. Nos meses de setembro a outubro, quando o Rio Xingu fica naturalmente mais seco, a capacidade instalada aproveitável da hidrelétrica não será maior do que 1.088 MW médios.

Por que, então, manter essa capacidade instalada total, que representará um custo de investimento da ordem de R$ 30 bilhões, com o aporte financeiro do BNDES, que se dispõe a financiar 80% do custo?

A resposta é que a usina de Belo Monte não virá sozinha. Para tornar viável sua operação e assegurar o retorno do investimento, será necessária a construção de, ao menos, outras três usinas à jusante, em Altamira, Pombal e São Félix.

E o conjunto de usinas projetadas naquele rio, considerado sagrado pelos povos indígenas, pode significara impossibilidade da manutenção das condições de existência e de reprodução das 19 etnias indígenas reconhecidamente existentes na região.

Frente a esta evidência, o governo insiste em reafirmar que a Resolução nº 6 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), de julho de 2008, reconhecendo o interesse estratégico do rio Xingu para fins de geração de energia hidrelétrica, “assegura” que o potencial a ser explorado seja somente o situado entre a sede urbana do município de Altamira e a sua foz – ou seja, a usina de Belo Monte.

É como se deliberações de governo em nosso país fossem pétreas, não passíveis de uma reformulação, a gosto das circunstâncias. O resultado é que as populações indígenas e as populações ribeirinhas tradicionais foram deliberadamente colocadas á margem do processo de discussão da obra.

O processo de consulta nas audiências públicas para o licenciamento ambiental da usina de Belo Monte foi obra de ficção. Os indígenas sofreram toda sorte de constrangimentos para participar dos debates, as comunidades não foram consultadas, e acabaram desconsideradas as críticas levantadas de forma sistemática por um painel de especialistas constituído por cientistas de importantes universidades brasileiras.

O projeto prevê a construção de cinco barragens, dois vertedouros e trinta diques de contenção entre 40 e 1940 metros de extensão e altura entre 4 e 59 metros. Está prevista a construção de 52 km de canais com largura variando entre 160 e 400 metros. Seriam realizadas escavações comuns da ordem de 150,7 milhões de m³ de concreto. O projeto inclui a maior parte do desvio do fluxo de água do rio Xingu em uma trecho de aproximadamente 100 km conhecido como Volta Grande do Xingu, para um trecho que atualmente é ocupado por florestas e assentamentos de pequenos agricultores entrecortados por diversos travessões da rodovia Transamazônica, por meio de construção de dois canais de derivação ao norte da terra indígena de Juruna do Paquiçamba.

O artifício utilizado na concepção do projeto de Belo Monte, ao reduzir a área de inundação inicialmente prevista do reservatório dos 1.200km² para 516km², foi o de não inundar as duas áreas indígenas localizadas na região: a terra indígena Juruna do Paquiçamba e a terra indígena Arara da Volta Grande. Ao não inundar diretamente os dois territórios, o projeto se adapta à concepção dos projetos hidrelétricos em voga de desconsiderar as conseqüências sociais e ambientais das populações não inundadas ou “afogadas” pela formação dos reservatórios.

Este artifício permitiu que o projeto não se sujeitasse ao disposto nos parágrafo 3º e 5º do artigo 231 da Constituição Federal, que impede a remoção das populações indígenas sem consulta prévia e exigindo a aprovação pelo Congresso Nacional.

Como ficou evidenciado por Antônio Carlos Magalhães, antropólogo e indigenista do Instituto Humanitas, em Aproveitamento hidrelétrico do rio Xingu “a região da Volta Grande é considerada pelo empreendedor como área diretamente afetada (ADA). No entanto, os povos indígenas Juruna do Paquiçamba, Arara da Volta Grande e as famílias indígenas xipaya, kuruaya, juruna, arara, Kayapó, etc., como também a população ribeirinha, em geral, que habitam em localidades diversas (Garimpo do Galo, Ilha da Fazenda, Ressaca, etc.,) não são consideradas como diretamente afetadas, mas apenas localizadas na Área de Influência Direta.

O projeto ainda vem sofrendo constantes modificações com a justificativa de “otimização”. A mais recente indica apenas um canal de derivação em substituição aos dois canais originalmente concebidos na revisão do projeto. O fato é que a região da Volta Grande do Xingu sofrerá uma severa diminuição dos níveis de água no trecho seccionado do rio. A “garantia” de uma vazão ecológica de 700m³/s é uma ficção e não permite à população (incluindo as comunidades indígenas Paquiçamba e Arara) que ficará na região água suficiente para suas necessidades (transporte e alimentação à base de pesca). É possível acreditar em uma fiscalização independente da Agência Nacional de Águas (ANA), a monitorar as vazões de forma a impedir que não se turbinem as águas necessárias para a geração nas épocas de hidrologia reduzida?

A insistência do governo em levar adiante o projeto de Belo Monte mostra que a lógica técnica e econômica cedeu lugar à obsessão. Com graves conseqüências que não se restringem às populações indígenas e comunidades ribeirinhas do rio Xingu. Elas serão também sentidas nos bolsos de todos nós, consumidores de eletricidade. O espectro do “apagão” parece ser a única justificativa para a construção dessa usina.

Entretanto, ela aponta também o modelo de desenvolvimento que se quer dar á região amazônica e ao país. A energia a ser produzida pela usina não será utilizada para aliviar a pobreza e incorporar parcelas da população que sempre estiveram excluídas das benesses do consumo. Ela será destinada a satisfazer a necessidade de grandes grupos metalúrgicos na perpetuação do modelo que se apropria dos recursos naturais das águas dos rios da região para produzir bens de baixo valor agregado, mas de alto conteúdo energético para exportação. A isso chamam de desenvolvimento.

É preciso reabrir o debate de modelo de desenvolvimento que queremos para o Brasil. Está na hora de rever a concepção dos projetos hidrelétricos na Amazônia.

Os rios amazônicos (Madeira, Tocantins, Araguaia, Xingu e Tapajós) detêm cerca de 65% do assim chamado “potencial hidrelétrico” brasileiro. No debate está em jogo o direcionamento da política energética do país, bem como o próprio futuro da ocupação amazônica. É necessário diversificar a matriz de geração de energia elétrica que atualmente prioriza a hidreletricidade, equivocadamente considerada como “limpa” e “barata”. A utilização da energia dos ventos (eólica) da biomassa (resíduos agrícolas), bem como outras fontes alternativas devem ser ampliadas. E abandonar as que levam à destruição dos rios e culturas de quem vive às suas margens.


Depois de ler e fazer a devida análise pessoal, acredito não haver mais dúvidas quanto à existência desse complexo tão agressivo e em desacordo com a realidade dos tempos modernos e suas opções não descartáveis.